A Resolução 2.427/2025 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que limita de forma drástica o acesso de crianças e adolescentes trans a tratamentos de afirmação de gênero, provocou imediata e contundente reação por parte da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat).
Ambas as entidades decidiram acionar o Supremo Tribunal Federal por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, sustentando que a medida fere direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. O caso foi distribuído ao ministro Cristiano Zanin, o que projeta sobre o Judiciário a responsabilidade de reparar um retrocesso social travestido de “resguardo médico”.
Insensibilidade
O cerne da controvérsia está na proibição, imposta pela nova Resolução do CFM, da prescrição de bloqueadores hormonais para crianças trans, bem como na elevação da idade mínima para a cirurgia de afirmação de gênero para 21 anos. Em paralelo, também veta a administração de hormônios sexuais em menores de 18 anos.
Essa postura, embora anunciada sob o pretexto de “prudência”, escancara uma insensibilidade gritante diante da realidade vivida por crianças e adolescentes trans, frequentemente mergulhadas em sofrimento psíquico pela dissonância entre corpo e identidade.
É sintomático que, em nome da suposta proteção da infância, o CFM desconsidere um acervo robusto de evidências científicas que atestam os benefícios de terapias afirmativas, especialmente no que tange à saúde mental e à redução de riscos como depressão, automutilação e suicídio. Em vez de escutar os especialistas da área, os pacientes e as famílias que vivem essa realidade no cotidiano, o Conselho optou por uma norma restritiva que coloca o Brasil na contramão de diretrizes adotadas em países com políticas públicas baseadas em ciência e humanidade.
A partir dos 16 anos
As entidades que assinam a ação contra o CFM não pedem nada além da retomada de um modelo que já estava em vigor com a Resolução 2.265/2019. Nela, permitia-se o bloqueio hormonal da puberdade, a hormonização a partir dos 16 anos e a cirurgia de afirmação a partir dos 18. Não se tratava de banalizar procedimentos médicos sérios, mas de respeitar o direito ao desenvolvimento livre e integral da personalidade das pessoas trans, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade humana, da igualdade e da proteção integral da criança e do adolescente.
Negação como violência
A retórica médica conservadora, que hoje se impõe por meio do CFM, ignora que negar tratamento é, por si só, uma forma de violência. Quando se veta o acesso a intervenções que podem alinhar corpo e identidade, o que se faz, em última instância, é cristalizar o sofrimento e institucionalizar a negação da existência trans. Isso não é prudência; é negligência moral e desrespeito à ciência.
O STF, instância que em outros momentos já reconheceu o direito à identidade de gênero e reafirmou o princípio da dignidade da pessoa humana como pilar constitucional, será agora chamado a agir novamente como guardião desses direitos. A decisão a ser tomada não será apenas jurídica: será também um manifesto político sobre o país que queremos construir — um país que acolhe a diferença ou que se fecha à pluralidade.
As organizações da sociedade civil que atuam na promoção dos direitos LGBTQIA+ estão certas em mobilizar o Judiciário. Mais do que uma disputa entre saberes técnicos, o que está em jogo é o reconhecimento da autonomia, do afeto e da proteção das infâncias trans, tantas vezes invisibilizadas. É preciso coragem para enfrentar as resistências travestidas de zelo institucional.